quinta-feira, 15 de julho de 2010

Memórias de um menino perdido

Queria jogá-la com força num táxi qualquer e dizer pra todo mundo ouvir: "leva essa puta daqui embora". Queria empurrá-la com a força que a abraçava, chamá-la de puta com a mesma convivcção que a amava, atingi-la de alguma maneira, da pior maneira possível. Queria, ardia, desejava. Mas mais do que tudo isso, queria é não conseguir fazê-lo, e conseguia.
Ofendida ela ia. Inteira voltava.
Sempre voltava.
Eu nunca entendi o amor por causa disso.
Meu pai desejava minha mãe mais do que o ar. Achava que ela era a mulher mais bonita que já viera ao mundo, a coisa mais perfeita que Deus já criara. E quando ela se embelezava pra sair... Quando descia as escadas de casa com as pernas nuas, os olhos pintados, o cabelo arrumado, linda, linda, linda, ele se encantava. Mas logo se irava, profundamente, ao pensar nos olhos pousados sobre ela. De um deslumbre momentâneo e involuntário vinha o ciúme arrebatador que a humilhava, antes mesmo que ela chegasse aos pés da escada.
Aquilo eu engolia em seco. Quando pequeno, mal percebia envolvido em alguma brincadeira que Bernadete inventava pra me levar longe da gritaria. Depois, ficou impossível que a pobre moça me deixasse alheio ao que acontecia na minha própria casa, e eventualmente era assunto na cidade inteira.
Daí passei de chorar as dores de minha mãe com ela agarrada a mim, no quarto, a vibrar quando ia embora jurando não suportar mais nenhum dia com ele. Eu preferia viver sem mãe a vê-la chorar assim, sabe? Mas isso só me fazia morrer de raiva quando ela voltava. E os dois sorriam e se abraçavam. Era a mesma coisa que justficava duas atitudes que me enojavam: o amor.
O amor maltratava sem explicações e o amor voltava sem vergonha.
O amor me enojava.
Bea chegou a me dizer, a insinuar, sabe, que eles não se amassem, que sequer se gostavam. Disse que talvez minha mãe só voltasse por mim e meu pai a tratasse mais como uma propriedade. Mas homens de posse não se arriscam a perder nada assim, de mãos beijadas. Já sempre que minha mãe partia, meu pai não lhe tirava razão, nem lhe impedia, nada. Apenas se ajoelhava aos seus pés, lhe pedia perdão, chorava. Todos os dias em que ela ficasse fora, ele chorava, sem tentar reavê-la ou substitui-la. Chorava e doía tão sinceramente que me machucava quase do mesmo tanto de quando ela fazia o mesmo, mas eu não chegava a desejar que voltasse. Não sei, mas a dor da mais fraca das mulheres, desde pequeno, sempre me atraiu mais que a do mais bravo homem fragilizado. Já quanto a mim, mamãe podia bem ter saudade, é verdade. Sei que me amava e queria me ver. Mas Bea não sabia quem ela abraçava primeiro quando voltava, nem quem ela punha no colo pra fazer dormir e velava o sono a noite inteira do dia em que chegava. Bea não via dois pares de olhos brilharem como aqueles.
A verdade é que um sem o outro era como ser inanimado. A vida soprava pra dentro deles quando se tocavam, ou simplesmente se sentavam lado a lado no jantar.
Bea não prestava atenção nesses detalhes, sabe, mas eu lhe mostrava. Eu lhe abria os olhos. Isso, porém, não fez minha desligada amiga se enojar do amor como eu esperava. Como eu, no fundo, queria. Simplesmente pra ter desse sentimento com alguém compartilhado. Convencida do amor, ela achou bonito...
Achou bonito meu pai querer de toda sua alma e de qualquer jeito atingir minha mãe, tirá-la do pedestal no qual ele mesmo a colocara e atirá-la para longe, para seus pés de reles mortal, doesse o que doesse. Achou bonito minha mãe ser capaz de perdoar e esquecer, e de ser inteira mesmo quando em milhões de pedaços. Simplesmente achou bonito que o amor fosse doído, que fosse voz alta e lágrima, que fosse imperfeito desse tanto.
Mas eu devia imaginar... Bea achou aquela borboleta de asas assimétricas a coisa mais linda desse mundo.
Felizes mesmo devem ser esses como minha companheira de caçar borboletas, satisfeitos com os deslizes encontrados na vida, por que, no final das contas, quem consegue evitá-los?

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Em pedaços

Quanto de você fica com os outros?
No meu caso, quando muito, cicatrizes. (Quem dera ser especial o suficiente pra deixar coisa melhor). De resto, quase nada. Uma música que eu gostava, um perfume que eu usava, a cidade onde eu nasci, se aparece no jornal, coisas desse tipo que, na maior parte do tempo, simplesmente inexistem. Gosto delas e especialmente de quem fica com elas.
Mas se me quer mais inteira e viva, só cicatrizada.
Sobre as pessoas que carregam essas minhas estigmas, esses meus pedaços, prefiro não dizer nada. Se abri grandes feridas, não posso me fingir inocente, mas também não posso curá-las. Há tempo pra isso. Há tempo pra tudo nessa vida. Mas o mais precioso de todos eles é o de deitar fora. Há sempre o tempo de deitar fora, em que temos de abrir mão das cicatrizes que deixamos nos outros, por mais que seja a última coisa nossa que ainda viva neles. Hora de não termos mais nada vivo desse jeito em ninguém, nenhuma lembrança, nenhuma dor, nenhum pedaço. Muito menos o pedaço que, diferente dos outros, não precisa de prelúdio pra vir à tona, seu pedaço de alma, que em toda parte do tempo existe, isso quando não dói pra caralho. É difícil abrir mão disso, é o máximo que pessoas como eu podem deixar com os outros, e você acaba querendo isso, vivendo disso. Por mais que cicatriz pareça que foi dos outros arrancado, foi de você. Se olha e se vê você, o que você fez e o que você foi, e mais ninguém. Não é uma música conhecida, um perfume que todo mundo usa, uma cidade de milhões. É unica e profundamente você. Seu. Mais do que isso, é seu no que é dos outros.
Pode ser meio medo da morte, medo de ser esquecido antes do tempo, no tempo certo, medo de que quem teve sua alma não tenha mais nada, mas é necessário.
Você só pode ser inteiro de novo se abrir mão do que deixou aos pedaços. Parece óbvio, né? Mas por que tanta gente não repara?