terça-feira, 14 de outubro de 2008

Enquanto não curo o hiato criativo,

copio o que queria ter escrito
"Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre."
(Paulo Mendes Campos, O anjo bêbado, Sabiá, Rio de Janeiro, 1969, p. 105)

ou se todos eles são detalhes de uma só pessoa, são pedaços que eu pretendo juntar todos os dias, algum dia dessa minha aventura terrestre.
(Ana Paula Martinho Saltão, Não conseguindo ficar quieta, Mesmo sem criatividade, São Paulo, 2008, sem páginas - ainda!)

2 comentários:

Tulio Bucchioni disse...

Pequenos prazeres e feitos!

Esses são definitivamente os melhores!

Adorei!

Alice Agnelli disse...

ai, paulinha!
que lindo, isso!

(e que comentário tosco o meu... mas é que o post é tão, tão, tão lindinho!)

viu, quem disse que é preciso criatividade para poder falar?

Se ainda as pessoas seguissem essa regra, o mundo seria um mundo de silêncios com apenas algumas boas sacadas como essa sua para sufocá-los de vez em quando!